Brasil rumo ao 5G | “O leilão vai fechar as lacunas na infraestrutura de conectividade”, Leonardo Euler de Morais

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O Brasil está diante do leilão de espectro mais importante na história do país. Serão leiloadas as bandas de 700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz para 5G. Em entrevista a DPL News, o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Leonardo Euler de Morais, comentou sobre os desafios envolvidos na preparação do edital e as expectativas para a nova tecnologia.

Ele garantiu que o diálogo com o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que avalia o edital, é “bom” e que tem total confiança no trabalho da área técnica da Agência. Ele ainda destacou que um dos desafios enfrentados atualmente pelo setor de telecomunicações é a “carga tributária incompatível e inconsistente com a essencialidade dos serviços”.

Se o padrão 4G mudou a vida das pessoas, o 5G transformará a sociedade e o ambiente produtivo

DPL News: O Brasil está enfrentando um dos leilões de espectro mais importantes para o desenvolvimento da economia digital na América Latina, qual o impacto mais esperado do 5G no país?

Leonardo Euler: Se o padrão 4G mudou a vida das pessoas, o 5G transformará a sociedade e o ambiente produtivo. Não é apenas uma nova geração, mas um guarda-chuva que envolve e aprimora outras tecnologias. Até o 4G falávamos de evolução, com o 5G falávamos de transformação. Além de um aumento nas conexões, o padrão IMT 2020 tem outras facetas, como aquelas relacionadas à IoT, para aplicações massivas ou àquelas que exigem latência muito baixa.

O potencial de transformação resultante de aplicações de AR ou VR é incalculável; pode haver revoluções nas áreas de saúde, educação, treinamento profissional e segurança pública

As etapas da conectividade podem ser resumidas em três ciclos: o primeiro foi conectar as casas, o seguinte foi conectar as pessoas, e agora começa a tomar forma um novo ciclo representado pelas coisas. A transição para o 5G, uma tecnologia que ainda está em sua primeira infância, vai acelerar inovações, novas tecnologias, como Inteligência Artificial (IA), robótica ou Realidade Virtual (RV). Estamos falando de uma rede crescente de dispositivos conectados associados a uma incrível capacidade computacional. Haverá uma variedade de serviços com a quantidade de requisitos diferentes que serão oferecidos por meio de uma rede que se autoconfigura de acordo com o tipo de uso. Portanto, o potencial de transformação resultante de aplicações de Realidade Aumentada (AR) ou VR é incalculável; pode haver revoluções nas áreas de saúde, educação, treinamento profissional e segurança pública. Acredito que estamos diante do nascimento de uma plataforma tecnológica chave para a quarta revolução industrial.

Obviamente, levará tempo para desenvolver todos esses novos conceitos, incluindo aqueles mais envolvidos no padrão network slicing ou automação de redes. Devemos lembrar que as pessoas nunca utilizam a tecnologia da maneira como os engenheiros projetam, por isso a criatividade humana sempre desempenha um papel importante.

A disponibilidade da infraestrutura é um componente essencial para o sucesso de qualquer estratégia digital

DPL News: O leilão 5G prioriza os compromissos de investimento no lugar da arrecadação, qual foi o motivo dessa decisão?

Leonardo Euler: Se entendemos que a economia baseada em dados é o novo petróleo e que a economia digital prevê conectividade, é fundamental entender que não há conectividade sem infraestrutura de telecomunicações. Para isso, a disponibilidade da infraestrutura é um componente essencial para o sucesso de qualquer estratégia digital. O objetivo deste leilão é cobrir as lacunas na infraestrutura de conectividade digital, razão pela qual existem compromissos de cobertura em pequenas localidades e povoados, e essas obrigações estão ligadas às bandas de 700 MHz e 2,3 GHz. No entanto, essas duas bandas quase não têm um ecossistema de equipamentos para 5G, portanto esses compromissos estão ancorados no 4G LTE, cuja base de acessos continuará crescendo e sendo relevante nos próximos cinco anos.

Quanto à faixa de 3,5 GHz – a principal porta de entrada para o 5G, considerando o ecossistema de equipamentos disponíveis nessa frequência – os compromissos de investimento estão na instalação progressiva de sites 5G. Além disso, tem obrigações de backhaul, pois muitos municípios ainda não possuem infraestrutura de transporte.

DPL News: Quais foram os principais desafios ao organizar um edital desta magnitude?

Leonardo Euler: O processo foi muito trabalhoso, cheio de desafios. Fazer todo o estudo e avaliar as condições do preço do leilão por si só já era um desafio único. Quando falamos em avaliar o custo de oportunidade do uso de uma banda, temos que fazer um modelo de negócios hipotético e considerar muitas variáveis: receita, opex, capex, o custo médio ponderado de capital (WACC), trazer tudo a valor presente. E você também tem que calcular todos os compromissos de investimento, porque muitos deles têm um valor presente líquido negativo. Se esses compromissos de investimento não estivessem no edital, muito provavelmente seriam áreas sem serviço, pois estamos falando de regiões que não apresentam atratividade econômica. Temos que pensar nesses recursos como uma oportunidade para expandir a infraestrutura em áreas que carecem de apelo econômico financeiro.

Houve outros desafios importantes, por exemplo, na Banda C estendida existem muitas áreas que mantêm televisão aberta, com sistemas muito rudimentares. Isso nos levou a pensar em alternativas para essas famílias que precisam desse sistema para ter acesso à TV aberta e gratuita, o que demandou formas mais criativas de fazê-lo. Outro desafio foi mudar a recepção dos sinais de transmissão de TV da banda C para a banda KU.

No Brasil, existe uma carga tributária incompatível e inconsistente com a essencialidade dos serviços de telecomunicações e dos dispositivos

DPL News: Outra peculiaridade desse processo é que ele incluiu obrigações de implantação 5G standalone (SA). Qual foi o motivo para essa decisão?

Leonardo Euler: O 5G standalone foi tema de muito debate. Eu mesmo tive discordâncias. Mas acredito que a decisão foi madura e talvez o tempo que o Brasil demore nesse desenvolvimento de redes 5G seja interessante para exigir o release 16 (do 3GPP). É uma decisão de política regulatória. Também é importante que os dispositivos compatíveis com 5G SA sejam mais acessíveis para a população, caso contrário, podemos correr o risco de que o acesso às redes de quinta geração seja muito limitado. E com toda a crise em que estamos, acho que é uma questão que merece atenção.

É um assunto para uma discussão mais ampla. É importante pensar em como diminuir a carga tributária. No Brasil, existe uma carga tributária incompatível e inconsistente com a essencialidade dos serviços de telecomunicações e dos dispositivos. Esta carga fiscal é comparável à aplicada aos produtos cujo consumo deve ser desencorajado, como o álcool ou o tabaco. As telecomunicações não podem estar neste grupo. É preciso superar as barreiras que dificultam o desenvolvimento de infraestrutura e serviços. A retomada progressiva da atividade econômica dependerá, em grande medida, dessa infraestrutura, serviços e efeitos transversais.

DPL News: O edital ainda está sendo analisado pelo TCU. Como estão as conversas com o tribunal?

Leonardo Euler: Essa análise está em andamento. Existem muitos desafios nessa interação com o TCU para que possamos esclarecer todas as dúvidas deles. Temos que esperar o prazo do Tribunal. O diálogo é bom, produtivo, é normal que tenham dúvidas sobre alguns aspectos do edital. Mas, em termos de condições de preços, tenho muita confiança no corpo técnico da Agência, que tem experiência na avaliação de condições de preços. Além disso, temos contato com a UIT (União Internacional de Telecomunicações) e outros países.

DPL News: O 5G possibilita muitas novas oportunidades de negócios e também novas formas de construção da rede. No desenvolvimento do 5G a nível mundial, as redes Open RAN estão começando a ser planejadas, como a Anatel pensa em promover o Open RAN?

Leonardo Euler: Acredito que Open RAN vai ser uma realidade, mas não por enquanto. É um conceito industrial, uma harmonização de interfaces. O que cabe a nós é não colocar obstáculos para que isso aconteça. Também será importante que prevaleça um diálogo com outros países em relação à certificação de equipamentos que pode favorecer a interoperabilidade. Outra forma de promoção é realizar estudos e discussões para que possamos entender como e quando a harmonização das interfaces estará mais madura.

Há mais complementaridade do que rivalidade na banda de 6 GHz

DPL News: No Brasil e em outros países da região, toda a banda de 6 GHz foi aprovada para uso não licenciado e as operadoras móveis estão preocupadas que, no futuro, não tenha espectro suficiente nas bandas intermediárias para 5G. Como o desenvolvimento dessas duas tecnologias pode coexistir?

Leonardo Euler: Há mais complementaridade do que rivalidade na banda de 6 GHz. Estou muito seguro com a decisão do Brasil. Além dos 400 MHz em 3,5 GHz, estamos pensando em 100 MHz em 4840-4940 MHz, uma banda C super estendida que abrimos para consulta pública. Acho que a quantidade de espectro para IMT certamente existirá. Em relação ao Wi-Fi 6, a decisão da Anatel foi madura porque também levou em conta as necessidades dos diferentes stakeholders e a necessidade de offload de tráfego de rede. Não foi a decisão que a indústria mais gostou, mas a verdade é que o espectro é um um bem escasso e toda essa briga é uma forma de refletir sobre como administrar o espectro de forma mais eficiente. Estamos fazendo essa gestão com diferentes ferramentas há 10 ou 15 anos. Mas talvez para uma gestão mais dinâmica seja necessário considerar o aumento do tráfego de dados do futuro. Acredito que vai haver muita complementaridade. Os operadores devem ter em conta que, em termos de espectro, existe um princípio que é: “usar ou partilhar”. Tem que compartilhar.

Devemos desregulamentar o mercado da TV por assinatura o mais rápido possível e também devemos levar em conta a gestão tributária

DPL News: Recentemente, a Anatel debateu a possibilidade de as operadoras tradicionais de TV oferecerem serviços pré-pagos, tendo em vista a evolução do mercado e do consumo audiovisual. Como a regulamentação deve ser adaptada na atualização da Lei do SeAC?

Leonardo Euler: A meu ver, devemos eliminar ou reduzir os encargos regulatórios e tributários. Não está acontecendo o level playing field neste setor. Os OTTs têm uma vantagem muito grande em termos fiscais, mas também em termos regulatórios. Existem duas maneiras de nivelar: ou aumentamos a regulamentação das OTTs ou diminuímos a regulamentação das operadoras de TV por assinatura. Acredito que o segundo modelo é o mais correto. Devemos desregulamentar esse mercado o mais rápido possível e também devemos levar em conta a gestão tributária.

Tradução: Mirella Cordeiro